A memória de um espaço ou um espaço de memória
Texto para debate sobre regeneração urbana "Coimbra com centro, um centro com gente"

Num dia, os telhados foram levantados para se poder caminhar melhor e armazenar mais peças; no outro, foram abertas janelas para se poder ver com mais clareza; mais tarde, construiu-se um palanque para que quando a água inundasse toda a olaria, não destruísse os documentos escritos. Foram também erguidas paredes de tabique para o fumo dos fornos não atrapalhar o trabalho da pintura. Os detalhes construtivos foram feitos sem ornamentos, sem o menor pudor estético, sem uma preocupação que não estritamente funcional. Esse edifício durante mais de 200 anos foi construído de retalhos, de acrescentos, com as mãos de todas as pessoas que lá habitavam e faziam o ofício da arte cerâmica.
Os anos passaram e o abandono ao lugar foi gradual. Em 2007 eram poucos os habitantes da fábrica. E os que estavam, novos, antigos, foram-se habituando à pré-existência em decadência. Além do trabalho diário, o trabalho de manutenção do espaço era obrigatório. Todos os dias era preciso equilibrar o edifício: retirar o excesso de água, remendar a cobertura, trocar uma porta, devolver o vidro ao caixilho. Era assim mesmo. Um trabalho precário, colectivo, sem preocupações de retorno financeiro, sem preocupações estéticas, apenas com o objectivo de ocupação e de realização de um processo de reabilitação em que a globalização imposta e a vida nos permitisse continuar um ofício em decadência.

No meu trabalho enquanto arquitecta, a primeira tarefa a realizar foi o levantamento arquitectónico do edifício. Logo comecei a ver o espaço de outra forma.
Após o horário laboral passei horas a olhar. Iniciei um processo de conhecimento. Só a ver. Sentava-me todos os dias em sítios diferentes. E encontrei um lugar silencioso, carregado de memórias e emoções, onde a luz entrava de uma forma cenográfica, a volumetria das chaminés rasgava a cobertura (de forma até inconsequente) e o ruído das madeiras, mesmo centenárias, ainda se fazia. A vida daquele lugar residia na sua imaterialidade. O seu carácter era especial.
Passámos para o desenho da intervenção sobre o construído. E foi nesse momento que percebi que a intervenção já estava escrita nas camadas de memória. A arquitectura pode ser só isto! A consolidação da pré-existência. A quase não intervenção.
Então, o que fazer? A ideia de recuperação está carregada de ambiguidades e decidir sobre aquele edifício tornou-se mais difícil do que decidir sobre mim. Porque é possível haver uma relação de amor por um espaço. É possível, sim. E alterar o espaço é alterar a nossa relação com ele. E essa relação pode ser de tal forma poética e forte que interessa a não arquitectura, a pré arquitectura ou, no estado de ruína, a pós arquitectura. Interessa a essência, a memória e a actividade continuada, a apropriação e a transformação informal.
Através de um processo de conhecimento gradual do edifício, de ocupação para conhecer, consegui comunicar com os conteúdos daquele lugar. Foi aí que aprendi que o trabalho do arquitecto se insere sempre num contexto cultural e também de comunicação. Assim, não consegui, ao longo deste processo deixar de ser em simultâneo, arquitecta e arqueóloga, com a vontade de catalogar tudo, de não perder o rasto da vivência, para reconfigurar a memória em objectos significativos e tentar colocar tudo no mesmo instante, respeitando as dinâmicas naturais e não marcando um ritmo artificial ao desenvolvimento do lugar.
Foi nesse instante que deixei de falar da imagem do edifício mas sim da minha experiência nele. A experiência, a memória e a vivência do espaço eram mais importantes que todo o resto.
Através de um processo de conhecimento gradual do edifício, de ocupação para conhecer, consegui comunicar com os conteúdos daquele lugar. Foi aí que aprendi que o trabalho do arquitecto se insere sempre num contexto cultural e também de comunicação. Assim, não consegui, ao longo deste processo deixar de ser em simultâneo, arquitecta e arqueóloga, com a vontade de catalogar tudo, de não perder o rasto da vivência, para reconfigurar a memória em objectos significativos e tentar colocar tudo no mesmo instante, respeitando as dinâmicas naturais e não marcando um ritmo artificial ao desenvolvimento do lugar.
Foi nesse instante que deixei de falar da imagem do edifício mas sim da minha experiência nele. A experiência, a memória e a vivência do espaço eram mais importantes que todo o resto.

Na escola tinha aprendido a ser racional, a seguir um processo de projecto. Ninguém me tinha ensinado a olhar. Na fábrica aprendi a ser intuitiva, a saber procurar. Só sentindo o espaço conseguimos perceber a sua essência, a sua atmosfera, o seu ADN e actuar de forma consciente.
E arquitectura é isto. É ouvir. É preciso saber transformar o espaço pela vivência e não por meros ideais estéticos. O arquitecto não é aquele que constrói edifícios.
O arquitecto é aquele que sabe ouvir as pessoas e os sítios.
A arquitectura é que faz o carácter das pessoas e a afectividade marca presença nas nossas decisões. E a nossa melhor tarefa, enquanto arquitectos, é descobrir, muito mais do que a forma, a essência, o espírito que encerra todos os lugares. É preciso conviver com vários estados do tempo, fazer conviver o tempo sobre os materiais e tornar a arquitectura uma coisa emocionante.
O projecto da fábrica começou há 5 anos e ainda não o consegui acabar. Provavelmente porque não escutei o suficiente, ou porque mantenho, ainda que em segredo, uma relação com aquele lugar. Tenho ideia que se deixar um projecto encerrado sobre si mesmo a relação acaba. E não é assim também com as pessoas?
É a transformação diária nos afectos que nos une. E se eu quero continuar ligada ao lugar e a escutá-lo diariamente, ele para mim, estará sempre em suspenso, com carácter indefinido e inacabado.